A Contaminação Silenciosa do Estuário de Santos e a confusão sobre lixo marinho
Pesquisa mostra que 80% do lixo marinho nasce em terra e revela os impactos silenciosos na saúde humana e na vida marinha.

A poluição marinha deixou de ser um problema distante para se tornar parte da rotina das cidades costeiras brasileiras. Na Baixada Santista, região marcada por manguezais, praias, rios, comunidades tradicionais e um dos maiores complexos portuários do mundo, o acúmulo de resíduos sólidos, microplásticos e metais pesados já provoca impactos visíveis e silenciosos na vida marinha, na saúde humana e no desenvolvimento urbano.
Especialistas apontam que a combinação entre atividades industriais, urbanização acelerada, falhas de saneamento, descarte irregular e a intensa circulação de embarcações torna o estuário de Santos uma das áreas mais vulneráveis do país.
Para Gabriela Otero, gerente de Água, Oceano e Resíduo do Pacto Global da ONU, ainda existe grande confusão sobre o chamado “lixo marinho”. Como ela explica, esse lixo “não é do mar, está no mar” por consequência direta da ação humana. A maior parte, segundo ela, tem origem na vida cotidiana das cidades. “Estimamos que 80% do que circula no oceano vem das atividades humanas em terra. Apenas 20% vêm de operações marítimas, como navegação e pesca”.
Essa massa de resíduos envolve muito mais do que as garrafas e embalagens visíveis na areia. Parte importante desse problema é invisível. Embora seja comum associar microplásticos às PET fragmentadas, essas partículas têm origem diversa e se multiplicam rapidamente. “Um dia foi garrafa, pneu, tecido, embalagem. Mas hoje, no Brasil, a maior fonte de microplástico é o desgaste de pneus”, afirma. Como o transporte rodoviário é o principal modal do país, o atrito dos pneus libera partículas minúsculas que chegam ao mar pelo escoamento da chuva.
Outro foco relevante nasce dentro de casa: a lavagem de roupas. “As fibras sintéticas se soltam e são invisíveis. As máquinas novas já começam a ter filtros, mas ainda estamos longe do ideal.” No mar, o processo se intensifica. “Aquele plástico esfarelado que vemos na praia já liberou milhares de partículas invisíveis antes mesmo de ser encontrado.”
A gestão inadequada de resíduos também agrava o problema. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) diferencia resíduo, algo que ainda pode ser reciclado, reaproveitado ou compostado, de rejeito, que não tem mais possibilidade de tratamento. “Fralda usada, absorvente, lixo de banheiro: isso é rejeito e precisa ir para aterro. Mas o plástico não. O plástico é recurso, quando destinado corretamente”, destaca Gabriela, ao lembrar que a falta de informação e infraestrutura faz com que alguns materiais acabam descartados de forma incorreta.
PACTO GLOBAL
O Pacto Global da ONU é a maior iniciativa de sustentabilidade corporativa do mundo e atua no Brasil como uma plataforma de colaboração entre empresas, governo, academia e sociedade civil para impulsionar práticas que reduzam impactos ambientais, sociais e econômicos. Na agenda voltada para oceanos e resíduos, o Pacto desenvolve pesquisas, mapeia riscos, promove compromissos empresariais e apoia políticas públicas voltadas ao enfrentamento da poluição marinha. Entre suas frentes, está o programa Onda Azul, que reúne atores públicos e privados para combater o escape de resíduos para rios, estuários e zonas costeiras, fortalecendo a gestão integrada do território e estimulando soluções baseadas em ciência e inovação.
Para Gabriela, o Pacto funciona como um catalisador de transformações estruturais. “Nosso papel é aproximar quem produz, quem regula e quem pesquisa, porque nenhum setor sozinho consegue enfrentar a poluição marinha. Precisamos trabalhar de forma integrada para evitar que o resíduo chegue ao mar”, resume.
BAIXADA SANTISTA
Santos aparece entre as regiões mais críticas do país. Após analisar 5.570 municípios, o Pacto Global identificou as 20 cidades brasileiras com maior risco de escape de resíduos para o ambiente aquático — e Santos está nesse grupo. Ainda assim, Gabriela vê na cidade um exemplo de mobilização e potencial de resposta. “Santos é uma das 20 cidades brasileiras com maior risco de poluição marinha. Mas também é um território com grande vontade de resolver”, explica ela, citando a força da sociedade civil, da produção científica local e de iniciativas de monitoramento e contenção.
A própria história recente da Baixada Santista reforça como essas questões ambientais não são abstratas. Ao falar sobre o passado industrial da região, Gabriela destaca que o Brasil já viveu um colapso ambiental ali. “Cubatão ensinou muito para o país. Ninguém quer voltar ao Vale da Morte”, afirma, lembrando o período entre as décadas de 1970 e 1980 em que a cidade acumulava um dos piores índices de poluição industrial do mundo. Naquele período, emissões tóxicas, ausência de controle ambiental e degradação extrema afetaram não apenas o ar e os rios, mas também a saúde da população local, registrando malformações, doenças respiratórias graves e destruição de áreas naturais inteiras.
Para Gabriela, a recuperação de Cubatão, hoje referência mundial em reabilitação ambiental, é a prova de que a mobilização conjunta entre poder público, empresas e comunidade gera resultados concretos, mas que também é de alerta, mostrando que a região ainda sofre com as consequências. “A memória de Cubatão mostra o que acontece quando negligenciamos o básico. É uma lição que vale para todo o país”, destaca.
OLHO NO FUTURO
Os dados mais recentes reforçam a necessidade de agir rapidamente. Estudos produzidos pelo Pacto Global em parceria com o Instituto Oceanográfico da USP mostram que o Brasil libera 3,4 milhões de toneladas de plástico por ano no ambiente, e cerca de 70% desse volume tem alto risco de chegar ao oceano. Parte desse material já aparece nas praias, rios e manguezais da Baixada Santista. Nas praias, predominam bitucas de cigarro, embalagens de alimentos e plásticos fragmentados. Nos manguezais, surgem itens que revelam outras camadas do problema: pallets de madeira vindos das operações portuárias, pendorfs e pinos plásticos relacionados ao consumo de drogas, além de hastes de cotonete, que indicam falhas de saneamento e vulnerabilidade social.
Esses padrões, segundo Gabriela, mostram que o lixo marinho é mais do que uma questão ambiental é social, urbana, econômica e de saúde pública. “Quando falta infraestrutura, o resíduo escapa para o rio e do rio para o mar”, resume a especialista, alertando que enfrentar o problema exige integração de políticas públicas, investimento em saneamento, educação ambiental e compromisso coletivo.
